"Pelé", desenho por Cassio Loredano

O caricaturista Cassio Loredano presta sua homenagem a Pelé com texto e desenho

Para além do texto escrito pelo curador do Instituto PIPA, Luiz Camillo Osorio, o caricaturista Cassio Loredano também prestou sua homenagem ao Rei do Futebol. Loredano, que trabalhou nos principais jornais europeus e brasileiros, entre eles o El Pais e O Estado de S. Paulo, discorre de modo afetivo sobre a grandeza de Pelé, que “enfeitiçou a Europa” a partir da periferia e que, entre muitas qualidades, reunia em seu futebol invenção, eficiência, generosidade, beleza e magia. Ao longo do texto, o cartunista destaca alguns momentos da carreira do ídolo e – como não podia deixar de ser – presta sua homenagem também em forma de desenho.


PELÉ

Vinha-se extinguindo lentamente. Ultimamente as emissões eram intermitentes, sinais de aparelhos de enfermaria. Acaba de apagar-se esses dias num hospital de São Paulo a luz que se acendeu na manjedoura de um cafundó de Minas Gerais há oitenta e dois anos. Era um menino. Chamaram-no Edson.

Edson. A mãe era Arantes, o pai, Nascimento. Tanto faz. O mundo – que essa luz o tempo todo ofuscou por onde passou – conhecia Pelé. Há décadas, a pessoa mais popular do planeta. Pelé. Presidentes de potências, cosmonautas, alpinistas, papas, reis e rainhas, celebridades midiáticas, heróis da hora, o mundo, a imprensa sempre gastou com eles cinco, dez dias, um mês. Mas quando em 1970 um velho jornalista inglês, Malcolm Alison, pergunta a outro, Pat Cerrand, como soletrar Deus, este prontamente responde “é mole: P-E-L-E”. (ITV world cup panel 1970.)

A magnitude de Pelé alcança o inacreditável. Num mundo desde sempre obediente ao hemisfério norte, sua glória estriba em trajetória percorrida na periferia. A partir da periferia Pelé mesmerizou, Pelé enfeitiçou a Europa. Chegou a um nível inalcançável de invenção e repente, de objetividade e eficiência (marcou 1281 gols), de versatilidade (destro, uma boa metade desses gols fez de canhota), de generosidade (deu muito mais gols do que fez), de beleza e magia. Houve juízes que apitaram “hands” por “não ser possível” que a bola estivesse fazendo o que estava fazendo por determinação de pés humanos.

Alguns dos maiores jogadores que lhe surgiram depois eram baixos, tinham aspecto de pequenos. E na fita métrica eram todos mais altos que Pelé. Que em sua elegância de felino fez da altura física uma abstração e se fazia gigante quando alçava os voos que alçava para cabecear. E, reparemos nas fotos, sempre de olhos abertos, uma das lições basilares de seu primeiro professor ainda em Bauru, seu pai Dondinho: olhos abertos, para rastrear a situação em volta e sobretudo saber onde está o goleiro.

Com exceção das grandes vitrines internacionais que são por exemplo campeonatos mundiais, o grosso da carreira de Pelé se deu, repetindo, na periferia. Mas nesses mundiais sua estrela brilhou algumas vezes de forma deslumbrante. Como na final da Copa de 1958, quando, aos 17 aninhos de idade, não tomando conhecimento de um rei na tribuna e menos ainda dos guarda-roupas que eram os beques suecos, aplicou num deles um deslumbrante “lençol”, marcando aquela pintura que foi o terceiro gol do Brasil na partida. Ou, no México, o magnífico capítulo da arquitetura que ficou no “risco”, maravilhosas ideias que não saíram do papel. Traduzindo: bolas que não entraram. E revejamos o desespero do goleiro tcheco, o “milagre” do goleiro inglês e a perplexidade do goleiro uruguaio duas vezes.

E, então, voltar para casa. Isso é o incrível em Pelé, construir sua fama, sua glória cá em baixo. A maior parte dos jogos que jogou, jogou no Brasil. Campeonatos regionais, torneios interestaduais, na maioria das vezes sem câmeras de televisão presentes. Para plateias brasileiras. Fazendo um gol de raiva da torcida que o vaiava (e de antologia na memória dos poucos sobreviventes que o viram), contra o Juventus no galinheiro da rua Javari, na Mooca paulistana. Ou na “catedral”, no Maracanã, em 1961 contra o Fluminense, quando, tomando a bola em sua grande área, avançou até a de Castilho, o campo todo, livrando-se de sete adversários tricolores para encaçapar. Triste é adjetivo fraco para a nossa negligência com registros dessa importância. Não há gravações. Joelmir Beting, repórter, foi quem esteve presente e promoveu a confecção de uma placa (daí a expressão “gol de placa”) que esteve anos numa das colunas de concreto do Maracanã. Esteve. (A placa, que estava desaparecida, uma pequena chapa de aço preta esmaltada, com  as inscrições em dourado, foi localizada nos guardados da superintendência dos estádios do Rio, Suderj, e está exposta com seu acervo.)

E aqui está, ainda entre nós, a imagem perene do super-atleta, do homem-luz, estivesse onde estivesse. Desde que se inventou esse tipo de eleição – e para sempre e para o mundo todo – o aclamado Atleta do Século (XX).

Ficará em Santos, escolheu estar em repouso em Santos, lugar onde tanto refulgiu, a luz surgida já noite bem entrada da quarta-feira, 23 de outubro de 1940, em Três Corações, pequenina cidade cafeeira banhada pelo ali sinuoso rio Verde, no sul acanhado de Minas Gerais.

31/12/2022



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